Tive a oportunidade de, em janeiro de 2020, percorrer a Sicília, conhecendo suas belezas e parte de seus vinhos. “Parte”, no caso, muito pequena, tal a enorme variedade de uvas, regiões, sub-regiões, estilos, denominações e produtores que a grande ilha oferece. Para bem conhecer os vinhos sicilianos, mesmo muitos meses seriam insuficientes.
A viticultura e a vinificação na Sicília tiveram um enorme progresso nos últimos 20 anos. Antes produtora de grandes volumes de vinhos com muita fruta e álcool, destinados a dar mais músculo a produtos algo débeis da Itália e da Comunidade Europeia (o que entretanto ainda acontece), a Sicília é, hoje, a fonte de muitos vinhos de alta qualidade e muita personalidade. Os cultivares característicos da ilha incluem, dentre outros, a Nero d’Avola (tinta mais plantada), a Catarratto (uva mais plantada de todas), a Grillo, a Inzolia, as Nerellos Mascalese e Cappuccio, a Frappato, a Carricante, a Pignatello. Uvas “internacionais”, como a Chardonnay e, especialmente, a Syrah, encontram lá também um terreno favorável. Regiões sicilianas, como o Etna, tornaram-se famosas mundo afora.
Um vinho siciliano tem uma tradição secular, no entanto reduzida por desvios e contratempos passados. Trata-se do Marsala, um dos grandes fortificados do mundo, ao lado de Porto, Jerez, Madeira, VDN e alguns exemplares da Austrália. O Marsala desfrutou de grande prestígio até que, há décadas, entrou em curva descendente. Muito disso deveu-se à produção de grandes quantidades de vinhos modificados, para fins culinários ou não, baratos e de má qualidade. Como frequentemente ocorre, os consumidores tomaram o todo pela parte, e a fama deste vinho decaiu muito. Felizmente, a consciência de bons produtores tem recuperado tanto a qualidade quanto o prestígio do Marsala.
Um dos principais responsáveis por este renascimento foi o saudoso Marco de Bartoli. Oriundo de famílias proprietárias de grandes vinícolas da região (como a Pellegrino), tornou-se uma espécie de dissidente, ao tentar recuperar a tradição e a qualidade, mesmo descumprindo regras (nem sempre bem formuladas quanto à qualidade) da DOC Marsala. Fundou sua própria vinícola, que hoje tem seu nome (www.marcodebartoli.com ), e passou a produzir, com grande rigor, vinhos de inegável excelência, merecedores de muitos prêmios na Itália e no mundo.
Visitei a De Bartoli em janeiro, sendo recebido por Giuseppina de Bartoli, filha e herdeira, com seus dois irmãos, da herança cultural e enológica do pai Marco. Anfitriã entusiasmada e de grande simpatia, brindou-nos com uma completa degustação dos melhores produtos da casa. A firma produz em Marsala e, também, em Pantelleria, pequena ilha que integra a DOC Sicilia, embora esteja mais perto da África do que da Europa. Ali, a grande uva é a Zibibbo (ou Moscatel de Alexandria), que gera passitos de fama mundial. A De Bartoli produz talvez o melhor exemplo destes vinhos, batizado Bukkuram (o Pai da Vinha), intenso, complexo e longo, mas também inova com um Zibibbo seco, aromático e leve, o Pietranera, uma delícia. Voltando a Marsala: imperdíveis os vinhos brancos secos feitos com a Grillo, a grande uva branca da Sicília: Grappoli del Grillo, de fresca acidez, muito corpo e grande potencial de envelhecimento para seu tipo; Vignaverde, mais leve e jovem; e Integer, quase um ‘vinho laranja’, com longa maceração pelicular e quase nenhum tratamento.
Mas, como não poderia deixar de ser, as grandes estrelas são os Marsalas na De Bartoli. Dentre todos, destaca-se o Vecchio Samperi Perpetuo: um vinho seco de portentosa complexidade, 100% Grillo, atingindo até 17,5% de álcool sem fortificação, graças a um processo de maturação perpétua. É um sistema semelhante a uma solera xerezana, em que vinho do ano refresca os vinhos de muitos anos anteriores, removendo-se a mesma quantidade para engarrafamento. Com isso, o produto vai se oxidando, se concentrando e ganhando camadas e mais camadas de aromas e sabores. É como se fosse um blend de um grande Oloroso VORS com um Sercial de décadas, mas sendo o produto final completamente seco. É um dos grandes vinhos do mundo, com certeza, e capaz de ter uma vida longuíssima. Vino da meditazione! Paradoxalmente, tem que ser engarrafado como Sicilia DOC, por não obedecer às normas da DOC Marsala (não é fortificado).
Uma pena, realmente, que já não haja mais importador da De Bartoli para o Brasil, pois a Decanter parou de trazer seus excelentes vinhos. Perdemos todos nós, os estudiosos e amantes desta fascinante bebida.